Todo 20 de setembro, o Rio Grande do Sul revive sua história com o Dia do Gaúcho e a Semana Farroupilha, celebrando heróis, estandartes, pilchas e chimarrão. Essa data evoca orgulho, cultura do Rio Grande do Sul — mas também traz à tona questionamentos: tradição vs transformação. O que significa ser gaúcho hoje, em meio à diversidade, à crítica histórica e ao protagonismo de novas vozes nas redes sociais?
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Raízes e memória histórica
A origem do Dia do Gaúcho remonta à Revolução Farroupilha (1835-1845), movimento de elites agrárias e militares insurgindo-se contra o poder central imperial por questões econômicas (impostos, comércio de charque) e políticas.
A narrativa tradicional exalta a bravura farroupilha, os acampamentos, a luta pela “liberdade”. Esse mito cultural molda a identidade gaúcha há gerações.
Por outro lado, historiadores e ativistas retomam episódios como o Massacre de Porongos (1844), no qual lanceiros, em sua maioria negros escravizados, foram traídos e mortos — uma página frequentemente omitida ou suavizada nos relatos oficiais.
Também se discute o papel de indígenas, quilombolas e mulheres na história gaúcha, frequentemente ausentes na construção tradicional de heróis, simbolismos e memórias. Esses debates desafiam a identidade gaúcha estática, apontando para sua complexidade histórica.
Tradição em movimento
Apesar das críticas, símbolos como chimarrão, pilcha, cavalgadas, churrasco seguem muito vivos na cultura do Rio Grande do Sul. Eles funcionam como marcas de pertencimento, elementos que unem pessoas de cidades pequenas, pampas, grandes centros.
Mas esses elementos não estão fixos. A pilcha, por exemplo, aparece em ambientes urbanos de modo mais simbólico — em eventos culturais, festas populares, moda que mistura o tradicional com o contemporâneo. O churrasco é parte da vida social, gastronomia urbana, festivais; cavalgadas viram passeios turísticos ou manifestações culturais que dialogam com preservação ambiental. Tradicionalismo, lemas de CTG (Centros de Tradições Gaúchas) permanecem fortes, mas enfrentam exigências por inclusão, renovação de repertório, abertura a novos intérpretes.
A voz das novas gerações
Jovens gaúchos estão reimaginando o que é identidade gaúcha no século XXI — nem sempre rural, muitas vezes urbano, mestiço, plural.
Há iniciativas criativas que mesclam tradição e inovação. Por exemplo, o projeto Gaúcho Goods, idealizado por uma jovem de Caxias do Sul, mistura arte, educação e personagens lúdicos (como o “Pilchadinho”) para transmitir símbolos gaúchos de modo acessível e inclusivo.
Mulheres, negras, indígenas reivindicam protagonismo: livros, coletâneas, estudos literários e culturais que resgatam narrativas marginalizadas dentro do gauchismo. A obra Matriz da Cultura Negra no Gauchismo, por exemplo, reaviva a participação afro-gaúcha em dança, canto, literatura, tradicionalismo.
A presença de imigrantes e descendentes de povos diversos também reconfigura o perfil cultural. O gaúcho urbano convive com influências europeias, indígenas, africanas e latino-americanas, incorporando ritmos, linguagens, modos de vida variados.
O gaúcho nas redes sociais
Redes sociais são um palco de disputa, celebração, satirização da identidade gaúcha.
Memes, vídeos no TikTok ou Reels, lives com gaiteiros contemporâneos ou rodas de chimarrão virais, mostram que símbolos clássicos são reapropriados. Alguns conteúdos exaltam o tradicionalismo com ironia, outros criticam estereótipos (por exemplo, o “gaúcho mascote macho bombacha” vs a realidade diversa de gênero e sexualidade).
Influenciadores e criadores de conteúdo usam essas plataformas para ensinar história local com críticas (Massacre de Porongos, participação negra), promover moda pilchada adaptada, promover o artesanato, gastronomia local ou experiências culturais gaúchas com novas estéticas.
Também há resistência: discursos que sentem que a cultura está “sendo desconstruída” ou “vendida” para o externo, ou acusam redes de superficialidade ou apropriação. Esse embate virtual reflete transformações reais na cultura do Rio Grande do Sul.
Desafios e futuro da tradição
Para ser identidade gaúcha relevante no século XXI, alguns desafios são especialmente visíveis:
- Inclusão histórica e racial: reconhecer e reparar apagamentos, como o dos Lanceiros Negros, valorizando vozes negras, indígenas e de gênero diverso dentro do tradicionalismo.
- Desigualdade econômica e rural-urbana: muitos símbolos idealizados vêm de uma visão ruralista ou campestre; há disparidades entre quem vive no campo e na cidade, acesso à terra, à cultura tradicional, à preservação ambiental dos pampas.
- Sustentabilidade: criar práticas que respeitem o meio ambiente, recursos naturais, biomas locais, sem romantizar o “campo” como espaço inesgotável.
- Globalização e cultura de consumo: enfrentando o risco de mercantilização da cultura; como manter autenticidade diante do turismo, da indústria cultural, da moda?
- Equilíbrio entre tradição e reinvenção: preservar sentidos simbólicos, memória coletiva, mas permitir diversidade de expressões, pluralidade de identidades — urbanos, mulheres, jovens, povos originários, LGBTQIA+, imigrantes.
Conclusão
O Dia do Gaúcho é mais do que uma celebração histórica — é uma oportunidade anual de refletir sobre o que somos, de onde viemos e para onde queremos ir. A identidade gaúcha pode (e deve) manter sua essência — laços com a história, os pampas, a tradição gaúcha —, mas reconhecendo suas tensões, abrindo espaço para debate, incorporando vozes diversas e adaptando-se ao século XXI.
E para você: o que significa, para você, ser gaúcho hoje?